...No dia seguinte bem cedo, apanhámos o "ônibus" até ao Assentamento da Bela Vista. O equivalente em Portugal a uma AUGI (Área Urbana de Génese Ilegal) mas no campo, iniciado pelos trabalhadores sem-terra das grandes culturas locais. É um povoado organizado dentro da sua aparente desorganização espacial e acima de tudo, é um local honesto que não tenta parecer algo que não é. A autenticidade e simplicidade do lugar e das suas gentes é nos presenteada assim que damos os primeiros passos na rua de terra batida e tom avermelhado.
Depois de uma mini-palestra do André Baptista sobre o Lugar e o Património e como os podemos transportar para os nossos cadernos, foi tempo de fazer uma rápida visita pelo local e despojarmo-nos de preconceitos para o podermos desenhar em conformidade. Somos atraídos por uma ruína à distância que nos convida a desenhar e mais ainda porque a nossa anfitriã efectivamente nos convida a ouvir a grandiosa história daquele casarão que testemunhou glória, riqueza mas também pobreza, sofrimento e ausência de direitos. Já lavada em lágrimas (genuínas e comoventes), Silvani tocou no assunto mais discutível dependendo da nossa visão política: "normalmente as pessoas vêm cá para conhecer a história do poderoso dono das terras, a história da família e do casarão, dos negócios e da política e esquecem-se do essencial - os escravos e os sem-terra que muito sofreram nas mãos dos senhores" Aqui, e deixo a ressalva de compreender a 100% as lágrimas sofridas da Silvani, não posso deixar de opinar com algum lado de direita que houve mérito numa pessoa que largou tudo e investiu o que tinha e não tinha para construir tudo aquilo e dar trabalho a outros... No fundo é tudo uma máquina que precisa de engrenagem e uns não podem viver sem os outros e vice-versa. Se há trabalhadores a lutar por melhores condições é porque primeiro surgiram postos de trabalho e isso também é louvável.
A vista sobranceira para os campos de café que outrora presenciaram os abusos descritos acima não deixa de ser notável e só nos restava pensar no Poderoso Barão a observar os seus escravos e a dizer para o seu herdeiro: "Filho, um dia, tudo isso será seu..." Este desenho foi feito na companhia do António Bártolo que para além de ser prodigioso no seu talento, é um mentor fantástico que nos dá sempre uma dica ou outra que fazem realmente a diferença e tudo isso com grande generosidade. Juntamente com o Simon e o Nelson, estes dias iniciais foram no mínimo hilariantes e mega descontraídos!
Diz a lenda que este casarão está assombrado e isso tem atrasado a sua recuperação (para além do assombramento mais comum, a falta de fundos) e na verdade, quando tirei fotos desta perspectiva para acabar a cor mais tarde, reparei que a foto estava com uma anomalia de luz num dos cantos. A Silvani veio a confirmar que todas as fotos que se tiram deste casarão são invadidas pelo tal fantasma! Sim... tirei uma foto a um fantasma, mas não o desenhei que aqui so entra quem eu quero...
Pouco antes do final do Encontro, pude desenhar no meio da rua uma vez que os carros eram poucos, (passaram dois por mim em 15 minutos de linhas) enquanto conversava com alguns moradores que iam passando por nós com a natural curiosidade de ver o que estávamos a fazer. As conversas passavam sempre pelos problemas do país e da localidade e o espanto das pessoas quando eu "ripostava" que em Portugal também temos alguns desses mesmos problemas. O ar surpreendido e algum descanso era comum a todos, por perceberem que não estavam sozinhos no mundo e que muitas mais pessoas (infelizmente) têm problemas semelhantes. Tudo isto com o sotaque Brasileiro porque se eu falasse em PT-PT ninguém percebia absolutamente nada...
Muito bom.
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